Sunday, April 30, 2006

De um conto


A volta do filho pródigo (Rembrandt).

Confesso minhas culpas, sincero. Sim, porque todo mundo já foi injusto, ainda que só em pensamento. Confesso também que sou culpado por ter sido, em algumas vezes, justo demais. Explico, em uma só palavra, para que o senhor melhor me entenda: misericórdia. Com os outros, é preciso de se ter mais misericórdia do que justiça. Deus é isso, afinal: imensa espera e abraço de chegada, não é mesmo? Da parábola, eis sobre o que lhe falo. O pai foi injusto, porque amava. Se a coisa toda fosse resolvida na justiça, o filho gastador teria levado uma boa surra e devolvido tostão por tostão do dinheiro mal usado. Mas o amor tem medidas? O amor é um rio, e o sempre...

Friday, April 28, 2006


A barca de Dante (Delacroix).

Reconduzo-me pela mão aonde nunca fui. Temo que caminhe à parte mais parte de mim, onde o lugar do meu mais terrivelmente se faça e onde me seja, assim, simplesmente, eu: o eu diante da morte.
Mas supro que não vou morrer. Ao menos não deveria, reflito. Pouco disse, pouco fiz, pouco fui. E neste ritmo em que sigo precisarei de mais, bem mais, três vezes mais. Talvez por isso, aliás, por necessidade, creia na vida eterna: eis que preciso de tempo.
Porém, do impreciso. Não quero o tempo dos relógios, “necrológios”. Quero o tempo dos parques, das mãos dadas, das caducas folhas. Quero o tempo dos inexatos não dizeres, confusas declarações. Quero o tempo do teu no meu braço dado, aos caminhos, sempre. Quero tempo do rolar da pedra, da morte da morte, solidão em travessia: ressurreição.

Thursday, April 27, 2006

Como quem pinta...


O Almoço dos Barqueiros (Renoir).

Eu queria escrever como quem pinta:
letraportintaporletra...

Wednesday, April 26, 2006

das coisas perdidas...

Perdi tantas coisas pelo caminho. E a mais importante delas, confesso, foi um jeito. Perdi, certo dia. Penso que me vendi? Perdi um jeito de sorrir que eu tinha, mas que não era só sorriso: era um sim, a tudo, um sim. A inocência, talvez. Hoje bem sei que os franciscanos têm toda a razão: pobreza e simplicidade. Nada mais. Alguns dirão, “e o amor?”. Sim, acho que. Mas...

Wednesday, April 19, 2006

Às voltas

Depois desta ausência de dezembros, áridos desertos, eis-me de novo às voltas com certos meus escritos: comigo mesmo, às voltas.

Remembranças
Eu me recordo do tempo que não vivi – e sinto saudade. Como se estranhamente morresse antes mesmo de haver havido. Sofro a solidão mal curada, inacostumável: fria e dolorosa, dolorosamente fria. Mas firmo, inconteste, meus pés num chão que não há, não nunca, houve. E quero-me mais, maior do que isto que sou. Mas sei lá se alguém ou algo me ouve nesta galáxia de leite que se move desde sempre, tanto tempo atrás. Sei lá se alguém se importa, enfim.
Quereres
Pinto quadros a cuspe, e me rio: sangue e solidão. Quero e digo, redigo: não. Não quero isso que todos querem. Quero nem mesmo o contrário. Quero-me, simplesmente. Encontrar-me por entre as coisas todas: garfos, fitas, facas, sinos, mesas, luas, gritos, vidros, macas, nossas, minhas, suas. Quero entender o sentido disso tudo. Saber por que sou, sinto e necessito sentir - ser. Se Deus existe no entre gemidos deste vale? Ai, lhe digo, me creia ou não: sim, mas às vezes não. Não parece que. Se esconde-esconde, brinca.